Há
dentro de nós, homens e mulheres, um universo de caos, de pontos obscuros, de
certezas e incertezas.
Em
“Nise: o coração da loucura”, temos um drama que aborda a vida de uma médica
psiquiatra, Nise (Glória Pires). Após sair da prisão, onde passou um bom
período, devido a ter sido acusada de ser comunista, ela retorna ao trabalho.
Sua atuação será num hospital psiquiátrico da cidade. É sobre seu contato com
estes pacientes marginalizados pela medicina e seu processo de tratamento que o
longa aborda.
Um
filme básico, que se apoia na protagonista do longa para conseguir obter seu
sucesso comercial e uma boa repercussão na mídia. Mas este drama não é apenas
um filme que envolve uma atriz global. É uma película correta, que se utiliza
de uma história de vida bela e corajosa. Um longa que sabe utilizar as cores,
os cenários e a trilha sonora para trazer o melhor do cinema e de forma
singela.
A
história se passa durante a ditadura miliar. Neste período histórico, pacientes
psiquiátricos, ditos como “doentes mentais”, eram marginalizados da sociedade,
trancafiados em hospitais que mais pareciam com prisões. Lá, distante dos olhos
de todos, viviam suas vidas, um dia após outro, dentro dos seus próprios
mundos.
Numa
das primeiras cenas que estabelecem o longa, temos Nise entrando numa sala onde
há vários médicos apresentando seus mais recentes trabalhos e pesquisas
envolvendo o tratamento para estes pacientes. Ao entrar, todos a observam,
dentre todos homens, uma mulher, claramente, um corpo estranho.
Ao
ver tais pesquisas, ela não compreende e não aceita como tais procedimentos
podem trazer a cura para estes pacientes. Então resolve realizar seu trabalho
com um grupo de internados da instituição.
A
ela cedem um espaço que ninguém deseja, a terapia ocupacional. É neste instante
que vemos o olhar desta médica ganhando forma e força. Ainda não sabendo como
realizar seu trabalho, ela apenas se atreve a observar e observar cada um
destes pacientes e perceber seus gestos e falas.
Após
a entrada de Almir (Felipe Rocha) trabalhar junto com ela, os dois propõem
então o trabalho com as artes, em suas mais variadas formas. Adentrar neste
universo intocável não é algo simples e seus “clientes”, como ela mesmo os
classifica, sabem disso. Para que ela possa entendê-los, ela precisa
compreendê-los.
Numas
da cenas, vemos um destes “clientes” desarmando todo penteado desta médica.
Ora, tudo é uma questão de simbologia. Aquele penteado tão bem organizado,
moldado, e estruturado, talvez esteja representando a própria personalidade
desta médica. Neste sentido, ele é desestruturado, desfeito, mostrando o caos e
a confusão. Talvez uma simbologia ao mundo em que estes personagens estão
alojados, um mundo de caos, onde a linguagem não está bem estabelecida.
Pouco
a pouco, o trabalho de Nise vai adentrando nas mentes destes indivíduos e por
meio destes trabalhos, ela percebe uma linguagem e uma expressão deste
inconsciente tão impenetrável. Tais desenhos, mandalas, podem expressar como
este universo interior talvez esteja estruturado. Ao entrar em contato com os
estudos de Carl Jung, Nise percebe aproximações dos estudos da psicanálise
junguiana com os próprios trabalhos feitos na instituição. Neste momento, começa então um lento e
intensa terapia moldada pelas teorias psicanalíticas, as artes e estes
“clientes”. Entretanto, tais estudos ainda não eram aceitos pela medicina da
época, provocando no corpo clinico desta instituição uma afronta aos trabalhos
desenvolvidos por Nise.
Com
delicadeza, respeitando cada passo destes personagens e nos revelando como esta
arte entra em contato com estes indivíduos, o longa vai nos proporcionando uma
ligação do público, com estes personagens e Nise, é o elo de ligação.
As
cores num primeiro momento do longa, são moldadas por tons escuros. Mas a
partir que o drama caminha, novas tonalidades vão adentrando neste universo.
Outro ponto interessante é com relação ao trabalho da pintura. Quando estes
estão pintando, cada vez mais a claridade se mostra presente, iluminando tais
quadros e revelando tais personagens até que ao final, o sol beira o olhar destes
personagens.
A
trilha sonora obedece a estrutura do longa, não manipula os sentimentos, mas faz
um trabalho sensato. Os cenários, pouco a pouco, tomam ângulos mais abertos, se
distanciando dos lugares fechados no começo do longa.
O
drama em si, ainda segue a cartilha do convencional, as vezes há elementos que
mostram toda beleza do drama, em outros, pode-se perceber um tom tradicional,
uma falta de ousadia. Mas o grande deste filme ainda está em sua história, ao
nos apresentar um retrato da medicina marcada pelo medo, o medo do desconhecido
e de sujeitos marcados pela marginalidade.
No
elenco, há grandes atuações por parte dos “clientes”. Alguns personagens
simplesmente mostram uma complexidade gritante, como a paciente Adelina Gomes
(Simone Mazzer). Estes personagens não tem nenhuma fala de fato, são os gestos
e as expressões faciais e corporais seus sistema linguagem. Contudo,
conseguimos compreender suas tentativas destes de relacionarem com o meio que
os cerca e tentando, ao modo deles, viverem experiências como qualquer
indivíduo, viver sentimentos como amor, ciúmes, medo e desamparo. Apesar do
belo trabalho destes atores, é Glória Pires, atriz global, que empresta sua
fama e seu nome para este drama, dando a esta película, toda uma visibilidade
que talvez, se não estivesse esta atriz neste trabalho, não teria.
“Nise
– O coração da loucura” nos fala sobre o homem, sobre sentimentos, sobre medos
e ideias de luta.