terça-feira, 11 de outubro de 2016

Nise - O Coração da Loucura


Há dentro de nós, homens e mulheres, um universo de caos, de pontos obscuros, de certezas e incertezas.

Em “Nise: o coração da loucura”, temos um drama que aborda a vida de uma médica psiquiatra, Nise (Glória Pires). Após sair da prisão, onde passou um bom período, devido a ter sido acusada de ser comunista, ela retorna ao trabalho. Sua atuação será num hospital psiquiátrico da cidade. É sobre seu contato com estes pacientes marginalizados pela medicina e seu processo de tratamento que o longa aborda.

Um filme básico, que se apoia na protagonista do longa para conseguir obter seu sucesso comercial e uma boa repercussão na mídia. Mas este drama não é apenas um filme que envolve uma atriz global. É uma película correta, que se utiliza de uma história de vida bela e corajosa. Um longa que sabe utilizar as cores, os cenários e a trilha sonora para trazer o melhor do cinema e de forma singela.

A história se passa durante a ditadura miliar. Neste período histórico, pacientes psiquiátricos, ditos como “doentes mentais”, eram marginalizados da sociedade, trancafiados em hospitais que mais pareciam com prisões. Lá, distante dos olhos de todos, viviam suas vidas, um dia após outro, dentro dos seus próprios mundos.

Numa das primeiras cenas que estabelecem o longa, temos Nise entrando numa sala onde há vários médicos apresentando seus mais recentes trabalhos e pesquisas envolvendo o tratamento para estes pacientes. Ao entrar, todos a observam, dentre todos homens, uma mulher, claramente, um corpo estranho.

Ao ver tais pesquisas, ela não compreende e não aceita como tais procedimentos podem trazer a cura para estes pacientes. Então resolve realizar seu trabalho com um grupo de internados da instituição.

A ela cedem um espaço que ninguém deseja, a terapia ocupacional. É neste instante que vemos o olhar desta médica ganhando forma e força. Ainda não sabendo como realizar seu trabalho, ela apenas se atreve a observar e observar cada um destes pacientes e perceber seus gestos e falas. 

Após a entrada de Almir (Felipe Rocha) trabalhar junto com ela, os dois propõem então o trabalho com as artes, em suas mais variadas formas. Adentrar neste universo intocável não é algo simples e seus “clientes”, como ela mesmo os classifica, sabem disso. Para que ela possa entendê-los, ela precisa compreendê-los.

Numas da cenas, vemos um destes “clientes” desarmando todo penteado desta médica. Ora, tudo é uma questão de simbologia. Aquele penteado tão bem organizado, moldado, e estruturado, talvez esteja representando a própria personalidade desta médica. Neste sentido, ele é desestruturado, desfeito, mostrando o caos e a confusão. Talvez uma simbologia ao mundo em que estes personagens estão alojados, um mundo de caos, onde a linguagem não está bem estabelecida.




Pouco a pouco, o trabalho de Nise vai adentrando nas mentes destes indivíduos e por meio destes trabalhos, ela percebe uma linguagem e uma expressão deste inconsciente tão impenetrável. Tais desenhos, mandalas, podem expressar como este universo interior talvez esteja estruturado. Ao entrar em contato com os estudos de Carl Jung, Nise percebe aproximações dos estudos da psicanálise junguiana com os próprios trabalhos feitos na instituição.  Neste momento, começa então um lento e intensa terapia moldada pelas teorias psicanalíticas, as artes e estes “clientes”. Entretanto, tais estudos ainda não eram aceitos pela medicina da época, provocando no corpo clinico desta instituição uma afronta aos trabalhos desenvolvidos por Nise.

Com delicadeza, respeitando cada passo destes personagens e nos revelando como esta arte entra em contato com estes indivíduos, o longa vai nos proporcionando uma ligação do público, com estes personagens e Nise, é o elo de ligação.

As cores num primeiro momento do longa, são moldadas por tons escuros. Mas a partir que o drama caminha, novas tonalidades vão adentrando neste universo. Outro ponto interessante é com relação ao trabalho da pintura. Quando estes estão pintando, cada vez mais a claridade se mostra presente, iluminando tais quadros e revelando tais personagens até que ao final, o sol beira o olhar destes personagens.  



A trilha sonora obedece a estrutura do longa, não manipula os sentimentos, mas faz um trabalho sensato. Os cenários, pouco a pouco, tomam ângulos mais abertos, se distanciando dos lugares fechados no começo do longa.

O drama em si, ainda segue a cartilha do convencional, as vezes há elementos que mostram toda beleza do drama, em outros, pode-se perceber um tom tradicional, uma falta de ousadia. Mas o grande deste filme ainda está em sua história, ao nos apresentar um retrato da medicina marcada pelo medo, o medo do desconhecido e de sujeitos marcados pela marginalidade.

No elenco, há grandes atuações por parte dos “clientes”. Alguns personagens simplesmente mostram uma complexidade gritante, como a paciente Adelina Gomes (Simone Mazzer). Estes personagens não tem nenhuma fala de fato, são os gestos e as expressões faciais e corporais seus sistema linguagem. Contudo, conseguimos compreender suas tentativas destes de relacionarem com o meio que os cerca e tentando, ao modo deles, viverem experiências como qualquer indivíduo, viver sentimentos como amor, ciúmes, medo e desamparo. Apesar do belo trabalho destes atores, é Glória Pires, atriz global, que empresta sua fama e seu nome para este drama, dando a esta película, toda uma visibilidade que talvez, se não estivesse esta atriz neste trabalho, não teria.

“Nise – O coração da loucura” nos fala sobre o homem, sobre sentimentos, sobre medos e ideias de luta.