quarta-feira, 10 de junho de 2015

Livre




O caminho da dor, o caminho da cura.

Como se levantar de traumas, como esquecer dores, como seguir adiante quando o passado está intimamente preso ao presente. A dor nos toma por diversos modos, por diversas faces e quando não a enfrentamos, mergulhamos num profundo mar sem fim.

Se levantar de tal constância significa muitas vezes trilhar caminhos complexos, difíceis, dolorosos, onde há dor está presente e somente ela nos despertará para a vida. Mas não a dor da morte em vida, mas a dor que nos faz perceber estar vivos.

Cheryl Strayed (Reese Witherspoon) perdera a mãe ainda recentemente. Sua mãe, Bobbi (Laura Dern), era sua base, sua guia, sua estrutura. Mesmo que as relações entre as duas sempre fosse marcada as vezes por severas discussões, a relação entre ambas ainda sim era marcada por uma cumplicidade.

Após a morte de Bobi, Cheryl se lança num mundo de drogas, bebidas, perdições e prazeres. Mesmo sendo casada, se lança cada vez mais em relações extraconjugais com uma única finalidade, se subjugar, se culpar, condenar-se a si mesma.

É neste ponto que então decide trilhar 1.800 quilômetros na Pacific Crest Trail americana. Uma trilha perigosa, cansativa e desgastante. Nesta empreitada, ela se colocará no limite das suas condições físicas, provando das suas forças e fraquezas, se apegando as suas lembranças e ao seu passado, confrontando as suas dores.


“Livre” caminha entre o passado e o presente, se intercalando constantemente num ritmo frenético. Oras vemos cenas de seu presente, de sua caminhada e das dificuldades em prosseguir adiante, ora vemos cenas do passado, quando sua mãe ainda estava viva, ou quando estava lutando contra o câncer.

Como um mosaico, um grande quebra cabeças, vamos conhecendo melhor esta personagem e vamos compreendendo melhor os motivos que levaram esta mulher a percorrer tal trilha, tal caminho. É como se tanto nós, que estamos vendo ao filme, quanto a própria personagem, vai entendendo de fato o que aconteceu a sua vida, as escolhas que fez, os caminhos que percorreu. Seu passado se revela a nós, revela a esta personagem.

É interessante perceber essa estrutura da montagem, como o diretor nos revela o inicio do longa, com , Cheryl gritando fortemente no penhasco de uma montanha. Após isso, sua caminhada até aquele momento em que a cena se inicia, alternando com cenas com sua mãe ainda viva. Mas tudo num primeiro momento parece muito confuso, muito emblemático. Nem ela, nem nós entendemos sua vida.

Aos poucos, o diretor percorre seu passado. Aí conhecemos uma mãe zelosa, amorosa, que sofreu na mão do esposo, mas que mesmo diante da dor, encontrou forças para reestruturar sua vida. Uma mulher que sofreu com a notícia de ter um câncer e não sobreviveu a esta fatídica doença. Conhecemos essa jovem, , Cheryl. Uma garota que nunca teve uma relação próxima com a mãe, mas que ao vê-la doente e sentindo que poderia perdê-la, sentiu a dor da culpa. Culpa, este é o sentimento que percorre sobre todo drama. Uma culpa que a condena, que mata, uma morte em vida que se materializa em seus atos.



“Livre” caminha neste sentindo, é uma jornada em busca de se compreender. , Cheryl, diante de toda sua dor, se perdeu em sua vida. Passar por este caminho, por essa jornada, é sentir a dor da vida e diante desta dor, é sentir-se viva novamente. A dor nos move, a ferida por mais dolorosa que seja, nos faz perceber que ainda estamos vivos.

No percurso, ela olha para o horizonte, se questiona se este é o caminho a seguir mesmo, ou o certo a fazer, mas diante da dúvida, ainda segue. O peso da sua bagagem a limitam e dificultam sua caminhada e aos poucos ela percebe que é necessário deixar objetos pelo caminho, lembranças no percurso, para que somente assim venhamos conseguir viver. 

Esquecer às vezes pode ser um sinal de vida, de manter-se vivo. Somos uma soma de todas as nossas vivências, mas quando estas nos ferem, é preciso esquecer todas essas vivências, não dar importância, não dar valor e caminhar, mesmo chorando, mesmo sangrando e caminhar. Num certo momento lá na frente, iremos relembrar o trajeto que fizemos e aí neste momento veremos se tal lembrança, da experiência foi de fato importante e se foi, em que sentindo.

Cheryl caminha, se fadiga, mas ao final, ao atravessar uma ponte (sim, tinha que ser uma ponte, que talvez possa simbolizar um elo entre o passado e o que virá adiante) ela se sente cansada, mas ainda sim, sente-se viva. Este cansaço, toda sua dor, lhe fez recobrar a vida, a enxergar com clareza tudo que aconteceu a ela.


Este longa, “Livre” faz uma referência a outro drama “Na natureza selvagem” com direção de Sean Penn. Se neste drama o protagonista busca na solidão do Alaska um novo motivo para viver, em “Livre” a protagonista busca nesta jornada, uma ruptura com o passado, uma forma de manter-se viva.

No elenco, Reese Witherspoon se lança vorazmente para dar vida a esta personagem. Sempre lembrada por comédias frágeis e superficiais, neste drama ela deixa de lado toda sensualidade e beleza para enfrentar situações que lhe exigem força e resistência física. Uma atuação esplêndida que lhe garantiu mais do que merecidamente uma indicação ao Oscar. É interessante notar que, assim com esta personagem, esta atriz se desprende de todo o seu glamour e toda maquiagem, todo seu passado para encarar um presente diferente.

Na direção Jean Marc Vallee mantém uma estrutura interessante. É dele também o premiado “Clube de Compras Dallas” e também o excelente “C. R. A. Z. Y”  que foi muito bem recebido pela crítica. Dramas comoventes, com uma certa pegada melodramática, mas que conseguem caminhar bem entre o distanciamento e a proximidade, entre a manipulação de sentimentos e a neutralidade para com o espectador.



segunda-feira, 8 de junho de 2015

The LefTovers: Deixados para trás

 


Uma trama sobre a dor, uma história sobre o se calar

“The Leftovers” aborda uma história envolta da religiosidade, fé, fanatismo e intolerância. Quando num fatídico 14 de outubro simplesmente 2% da população desaparecem, o mundo entrou num profundo caos. Seria o arrebatamento proclamado pela Bíblia? Para onde foram levadas essas pessoas? Entretanto e os que ficaram como seguiriam adiante com suas vidas?

Passado três anos após este incidente, vemos uma pequena cidade de Nova York tentar viver reconstruir sua vida novamente, se reerguendo do luto deixado pelos que foram e tentando encontrar novas razões para suas vidas. Uma aparente calmaria está sobre toda a cidade, mas no fundo, todos ainda choram pelos seus, pelos que partiram.

Deixados para trás, é sobre eles que a série se centrará. Não importa os que foram ou o que de fato tenha acontecido, mas o que interessa nessa trama é tentar entender a dor dos que ficaram, dos que foram renegados, deixados e abandonados.

Kevin Garvey (Justin Theroux) é delegado na pequena cidade de Mapleton. Desde que seu pai teve surtos psicóticos e enlouquecera, ele assumiu a sua função. Apesar dele não ter nenhum membro de sua família levados neste episódio intitulado como “partida repentina”, teve sua família totalmente desestruturada. O filho mais velho, Tom Garvey (Chris Zylka), passou a seguir uma seita que tem como líder um homem que pensa ter poderes para retirar os fardos das pessoas. Laurie (Amy Brenneman), sua esposa, entrou para outra seita que fora criada após estes eventos, os “Remanescentes Culpados” e por fim, a filha Jill (Margaret Qualley) que cada vez mais está distante do pai e calada diante da vida.

No universo desta cidade, há ainda Nora (Carrie Coon), uma mulher que perdera todos os membros de sua família e desde então tem recebido a compaixão de todos. Meg (Liv Tyler), uma mulher que está tentando se levantar do luto. Ela perdeu uma pessoa próxima também nessa partida e ainda não superou a dor dessa perda. Sendo vigiada constantemente pelos “Remanescentes Culpados” encontrará neste grupo uma base para a superação dessa dor e por fim Matt (Christopher Eccleston), padre da igreja local. Sempre tentando ajudar o próximo, não aceita a explicação de que estes que partiram foram arrebatados por Deus.



Estes personagens representam esta cidade, uma cidade que está adormecida diante da dor, tentando se levantar do caos, tentando seguir com suas vidas, entretanto, nada será como antes, pois nada voltará a ser como era antes.

Baseado na obra de Tom Perrotta, autor renomado, também criador do aclamado romance “Pecados Íntimos”, esse romance tem como objetivo compreender a alma dos que ficaram. Para alguns, estes que sumiram foram levados aos céus, mas se foram e os que ficaram, ficaram entregues ao abandono de Deus? Porém, dentre os que desapareceram estavam assassinos, psicopatas, adúlteros, ou seja, aceitar a ideia do arrebatamento é ir contra tudo o que se acredita sobre o certo o errado. Mas se estes não foram arrebatados, então, o que aconteceu a eles? Essa é a dúvida que persegue a muitos, mas esta não é falada ou dita, mas apenas sentida, pensada, rememorada e bradada.

Quem assina a produção executiva deste seriado é Damon Lindelof, responsável pelo seriado odiado e amado aos extremos, Lost. Por ser um dos idealizadores de Lost, as ideias que estiveram presentes naquela série também se encontram nesta. Em toda temporada vemos elementos que nos remete a sinais, mitologias e segredos sendo lançados. 

Um “q” de mistério percorre esse fatídico dia. É um veado que sempre está a aparecer a Kevin. São os cachorros que mudam repentinamente, tornando-se animais perigosos e agressivos. São as visões e alucinações constantes deste delegado que denotam que algo muito grande e complexo está por traz destes acontecimentos. São os pombos e um olhar de epifania que acoberta a todos os personagens. Enfim, há toda uma construção simbólica sobre cada ato, sobre cada cena, sobre cada personagem, diálogo, música e nos remetendo a ideias e pensamentos.



Por mais que esta série se apoie fortemente na simbologia e nos mistérios, o que mais interessa a este seriado é abordar como a dor é sentida, como a perda é percebida pelos seus personagens. Cada homem e mulher se renega a lembrar a dor, o luto. Uma forma de defesa, uma forma de se manterem vivos. Ora, o que é a dor? Ela nos move, ela nos faz caminhar por estradas antes nunca seguidas, mas também nos fere diariamente, cotidianamente. Quando todas as dores cessam, ainda há este sentimento calado, tão sútil que faz transbordar sentimentos.

É sobre essa dor que esse seriado fala, toca, aborda e revela. O que os sujeitos da seita “Remanescentes Culpados” fazem é não esquecer a dor, mas antes, abraça-la ferozmente. Mas se estes a abraçam, não fazem isso para seguirem adiante, fazem isto para perderem seus sentimentos. Estes personagens não falam, toda sua comunicação se dá por meio de mensagens. O que eles querem é fazer com que todos da cidade não esqueçam essa dor, seus entes queridos, mas se lembrem, relembrem e sintam o luto. Eles não tem família, amigos ou laços de sentimentos, são paginas em branco, sem passado ou presente.

A temporada inicia com esta seita confrontando todos a lembrarem de suas dores e encerra com todos confrontados por este sentimento. Entretanto, relembrar aquilo que não desejamos é tão perigoso quanto esquecer.

O seriado possui uma trilha sonora instrumental fantástica. Numa análise primária, essa sonoridade tem como objetivo manipular os sentimentos, contudo se analisarmos com exatidão cada elemento sonoro, perceberemos que este instrumental entra como uma mensagem, como uma declamação do que não pode ser dito ou falado. 



Os próprios seguidores do “Remanescentes Culpados” não falam, ou seja, não expressam seus sentimentos, assim como todos os moradores desta cidade. Há uma dor que está sento sentida, mas não falada, uma mancha que está a vista, mas não sendo visualizada. E a música entra como uma declamação dessa dor, desse mal. Quando seus personagens querem dizer algo, mas não podem, por vários motivos, esta canção, esta sonoridade entra representando essa fala, esta confissão.

Outro elemento a ganhar força na série é a fé. A religião move a estes personagens. Mas é interessante notar como esta é provada. Para Matt, o padre local, o que eles estão vivenciando é um período de fé. Como manter sua crença quando tudo diz que nada mudará? Se houve um arrebatamento, eles foram renegados, se foram, por qual motivo? Por que seguir adiante? Elementos como o natal, família, solidariedade, esperança e milagre perdem sua força e são provados no fogo. Entretanto ao final podemos sentir um tom de otimismo envolvendo a todos os personagens, seja pela figura de um cão que muda suas atitudes, por um bebe que adentra a vida de uma personagem ou pela reconciliação que é feita entre os membros de uma família.


“The Leftovers”, novo drama da HBO, mergulha profundo em segredos, mistérios, predestinação, sinais e fé. Em meio a essa gama de complexidade, traz para o centro da trama a dor, a dor que nos move, nos toca, e nos transforma. Das ruínas, nascerá o novo. Do caos, haverá a ordem. Da dor, brotará a cura e a vida.