O
caminho da dor, o caminho da cura.
Como se levantar de traumas, como esquecer dores, como
seguir adiante quando o passado está intimamente preso ao presente. A dor nos
toma por diversos modos, por diversas faces e quando não a enfrentamos,
mergulhamos num profundo mar sem fim.
Se levantar de tal constância significa muitas vezes
trilhar caminhos complexos, difíceis, dolorosos, onde há dor está presente e
somente ela nos despertará para a vida. Mas não a dor da morte em vida, mas a
dor que nos faz perceber estar vivos.
Cheryl Strayed (Reese Witherspoon) perdera a mãe ainda
recentemente. Sua mãe, Bobbi (Laura Dern), era sua base, sua guia, sua
estrutura. Mesmo que as relações entre as duas sempre fosse marcada as vezes
por severas discussões, a relação entre ambas ainda sim era marcada por uma
cumplicidade.
Após a morte de Bobi, Cheryl se lança num mundo de
drogas, bebidas, perdições e prazeres. Mesmo sendo casada, se lança cada vez
mais em relações extraconjugais com uma única finalidade, se subjugar, se
culpar, condenar-se a si mesma.
É neste ponto que então decide trilhar 1.800
quilômetros na Pacific Crest Trail americana. Uma trilha perigosa, cansativa e
desgastante. Nesta empreitada, ela se colocará no limite das suas condições
físicas, provando das suas forças e fraquezas, se apegando as suas lembranças e
ao seu passado, confrontando as suas dores.
“Livre” caminha entre o passado e o presente, se
intercalando constantemente num ritmo frenético. Oras vemos cenas de seu
presente, de sua caminhada e das dificuldades em prosseguir adiante, ora vemos
cenas do passado, quando sua mãe ainda estava viva, ou quando estava lutando
contra o câncer.
Como um mosaico, um grande quebra cabeças, vamos
conhecendo melhor esta personagem e vamos compreendendo melhor os motivos que
levaram esta mulher a percorrer tal trilha, tal caminho. É como se tanto nós,
que estamos vendo ao filme, quanto a própria personagem, vai entendendo de fato
o que aconteceu a sua vida, as escolhas que fez, os caminhos que percorreu. Seu
passado se revela a nós, revela a esta personagem.
É interessante perceber essa estrutura da montagem,
como o diretor nos revela o inicio do longa, com , Cheryl gritando fortemente
no penhasco de uma montanha. Após isso, sua caminhada até aquele momento em que
a cena se inicia, alternando com cenas com sua mãe ainda viva. Mas tudo num
primeiro momento parece muito confuso, muito emblemático. Nem ela, nem nós
entendemos sua vida.
Aos poucos, o diretor percorre seu passado. Aí
conhecemos uma mãe zelosa, amorosa, que sofreu na mão do esposo, mas que mesmo
diante da dor, encontrou forças para reestruturar sua vida. Uma mulher que
sofreu com a notícia de ter um câncer e não sobreviveu a esta fatídica doença.
Conhecemos essa jovem, , Cheryl. Uma garota que nunca teve uma relação próxima
com a mãe, mas que ao vê-la doente e sentindo que poderia perdê-la, sentiu a
dor da culpa. Culpa, este é o sentimento que percorre sobre todo drama. Uma
culpa que a condena, que mata, uma morte em vida que se materializa em seus
atos.
“Livre” caminha neste sentindo, é uma jornada em busca
de se compreender. , Cheryl, diante de toda sua dor, se perdeu em sua vida.
Passar por este caminho, por essa jornada, é sentir a dor da vida e diante
desta dor, é sentir-se viva novamente. A dor nos move, a ferida por mais
dolorosa que seja, nos faz perceber que ainda estamos vivos.
No percurso, ela olha para o horizonte, se questiona
se este é o caminho a seguir mesmo, ou o certo a fazer, mas diante da dúvida,
ainda segue. O peso da sua bagagem a limitam e dificultam sua caminhada e aos
poucos ela percebe que é necessário deixar objetos pelo caminho, lembranças no percurso,
para que somente assim venhamos conseguir viver.
Esquecer às vezes pode ser um
sinal de vida, de manter-se vivo. Somos uma soma de todas as nossas vivências,
mas quando estas nos ferem, é preciso esquecer todas essas vivências, não dar
importância, não dar valor e caminhar, mesmo chorando, mesmo sangrando e
caminhar. Num certo momento lá na frente, iremos relembrar o trajeto que
fizemos e aí neste momento veremos se tal lembrança, da experiência foi de fato
importante e se foi, em que sentindo.
Cheryl caminha, se fadiga, mas ao final, ao atravessar
uma ponte (sim, tinha que ser uma ponte, que talvez possa simbolizar um elo
entre o passado e o que virá adiante) ela se sente cansada, mas ainda sim,
sente-se viva. Este cansaço, toda sua dor, lhe fez recobrar a vida, a enxergar
com clareza tudo que aconteceu a ela.
Este longa, “Livre” faz uma referência a outro drama
“Na natureza selvagem” com direção de Sean Penn. Se neste drama o protagonista
busca na solidão do Alaska um novo motivo para viver, em “Livre” a protagonista
busca nesta jornada, uma ruptura com o passado, uma forma de manter-se viva.
No elenco, Reese Witherspoon se lança vorazmente para
dar vida a esta personagem. Sempre lembrada por comédias frágeis e
superficiais, neste drama ela deixa de lado toda sensualidade e beleza para
enfrentar situações que lhe exigem força e resistência física. Uma atuação
esplêndida que lhe garantiu mais do que merecidamente uma indicação ao Oscar. É
interessante notar que, assim com esta personagem, esta atriz se desprende de
todo o seu glamour e toda maquiagem, todo seu passado para encarar um presente
diferente.
Na direção Jean Marc Vallee mantém uma estrutura
interessante. É dele também o premiado “Clube de Compras Dallas” e também o
excelente “C. R. A. Z. Y” que foi muito
bem recebido pela crítica. Dramas comoventes, com uma certa pegada
melodramática, mas que conseguem caminhar bem entre o distanciamento e a
proximidade, entre a manipulação de sentimentos e a neutralidade para com o
espectador.