Uma trama sobre a dor, uma história
sobre o se calar
“The Leftovers” aborda
uma história envolta da religiosidade, fé, fanatismo e intolerância. Quando num
fatídico 14 de outubro simplesmente 2% da população desaparecem, o mundo entrou
num profundo caos. Seria o arrebatamento proclamado pela Bíblia? Para onde
foram levadas essas pessoas? Entretanto e os que ficaram como seguiriam adiante
com suas vidas?
Passado três anos após
este incidente, vemos uma pequena cidade de Nova York tentar viver reconstruir
sua vida novamente, se reerguendo do luto deixado pelos que foram e tentando
encontrar novas razões para suas vidas. Uma aparente calmaria está sobre toda a
cidade, mas no fundo, todos ainda choram pelos seus, pelos que partiram.
Deixados para trás, é
sobre eles que a série se centrará. Não importa os que foram ou o que de fato
tenha acontecido, mas o que interessa nessa trama é tentar entender a dor dos
que ficaram, dos que foram renegados, deixados e abandonados.
Kevin Garvey (Justin Theroux) é delegado na pequena cidade de Mapleton.
Desde que seu pai teve surtos psicóticos e enlouquecera, ele assumiu a sua
função. Apesar dele não ter nenhum membro de sua família levados neste episódio
intitulado como “partida repentina”, teve sua família totalmente desestruturada.
O filho mais velho, Tom Garvey (Chris Zylka), passou a seguir uma seita que tem
como líder um homem que pensa ter poderes para retirar os fardos das pessoas. Laurie
(Amy Brenneman), sua esposa, entrou para outra seita que fora criada após estes
eventos, os “Remanescentes Culpados” e por fim, a filha Jill (Margaret Qualley)
que cada vez mais está distante do pai e calada diante da vida.
No universo desta
cidade, há ainda Nora (Carrie Coon), uma mulher que perdera todos os membros de
sua família e desde então tem recebido a compaixão de todos. Meg (Liv Tyler),
uma mulher que está tentando se levantar do luto. Ela perdeu uma pessoa próxima
também nessa partida e ainda não superou a dor dessa perda. Sendo vigiada constantemente
pelos “Remanescentes Culpados” encontrará neste grupo uma base para a superação
dessa dor e por fim Matt (Christopher Eccleston), padre da igreja local. Sempre
tentando ajudar o próximo, não aceita a explicação de que estes que partiram
foram arrebatados por Deus.
Estes personagens
representam esta cidade, uma cidade que está adormecida diante da dor, tentando
se levantar do caos, tentando seguir com suas vidas, entretanto, nada será como
antes, pois nada voltará a ser como era antes.
Baseado na obra de Tom
Perrotta, autor renomado, também criador do aclamado romance “Pecados Íntimos”,
esse romance tem como objetivo compreender a alma dos que ficaram. Para alguns,
estes que sumiram foram levados aos céus, mas se foram e os que ficaram,
ficaram entregues ao abandono de Deus? Porém, dentre os que desapareceram
estavam assassinos, psicopatas, adúlteros, ou seja, aceitar a ideia do
arrebatamento é ir contra tudo o que se acredita sobre o certo o errado. Mas se
estes não foram arrebatados, então, o que aconteceu a eles? Essa é a dúvida que
persegue a muitos, mas esta não é falada ou dita, mas apenas sentida, pensada,
rememorada e bradada.
Quem assina a produção
executiva deste seriado é Damon Lindelof, responsável pelo seriado odiado e
amado aos extremos, Lost. Por ser um dos idealizadores de Lost, as ideias que
estiveram presentes naquela série também se encontram nesta. Em toda temporada
vemos elementos que nos remete a sinais, mitologias e segredos sendo lançados.
Um “q” de mistério percorre esse fatídico dia. É um veado que sempre está a
aparecer a Kevin. São os cachorros que mudam repentinamente, tornando-se
animais perigosos e agressivos. São as visões e alucinações constantes deste
delegado que denotam que algo muito grande e complexo está por traz destes
acontecimentos. São os pombos e um olhar de epifania que acoberta a todos os
personagens. Enfim, há toda uma construção simbólica sobre cada ato, sobre cada
cena, sobre cada personagem, diálogo, música e nos remetendo a ideias e
pensamentos.
Por mais que esta série
se apoie fortemente na simbologia e nos mistérios, o que mais interessa a este
seriado é abordar como a dor é sentida, como a perda é percebida pelos seus
personagens. Cada homem e mulher se renega a lembrar a dor, o luto. Uma forma
de defesa, uma forma de se manterem vivos. Ora, o que é a dor? Ela nos move,
ela nos faz caminhar por estradas antes nunca seguidas, mas também nos fere
diariamente, cotidianamente. Quando todas as dores cessam, ainda há este
sentimento calado, tão sútil que faz transbordar sentimentos.
É sobre essa dor que
esse seriado fala, toca, aborda e revela. O que os sujeitos da seita
“Remanescentes Culpados” fazem é não esquecer a dor, mas antes, abraça-la
ferozmente. Mas se estes a abraçam, não fazem isso para seguirem adiante, fazem
isto para perderem seus sentimentos. Estes personagens não falam, toda sua
comunicação se dá por meio de mensagens. O que eles querem é fazer com que
todos da cidade não esqueçam essa dor, seus entes queridos, mas se lembrem,
relembrem e sintam o luto. Eles não tem família, amigos ou laços de
sentimentos, são paginas em branco, sem passado ou presente.
A temporada inicia com
esta seita confrontando todos a lembrarem de suas dores e encerra com todos
confrontados por este sentimento. Entretanto, relembrar aquilo que não desejamos
é tão perigoso quanto esquecer.
O seriado possui uma
trilha sonora instrumental fantástica. Numa análise primária, essa sonoridade
tem como objetivo manipular os sentimentos, contudo se analisarmos com exatidão
cada elemento sonoro, perceberemos que este instrumental entra como uma
mensagem, como uma declamação do que não pode ser dito ou falado.
Os próprios
seguidores do “Remanescentes Culpados” não falam, ou seja, não expressam seus
sentimentos, assim como todos os moradores desta cidade. Há uma dor que está
sento sentida, mas não falada, uma mancha que está a vista, mas não sendo
visualizada. E a música entra como uma declamação dessa dor, desse mal. Quando
seus personagens querem dizer algo, mas não podem, por vários motivos, esta
canção, esta sonoridade entra representando essa fala, esta confissão.
Outro elemento a ganhar
força na série é a fé. A religião move a estes personagens. Mas é interessante
notar como esta é provada. Para Matt, o padre local, o que eles estão
vivenciando é um período de fé. Como manter sua crença quando tudo diz que nada
mudará? Se houve um arrebatamento, eles foram renegados, se foram, por qual
motivo? Por que seguir adiante? Elementos como o natal, família, solidariedade,
esperança e milagre perdem sua força e são provados no fogo. Entretanto ao
final podemos sentir um tom de otimismo envolvendo a todos os personagens, seja
pela figura de um cão que muda suas atitudes, por um bebe que adentra a vida de
uma personagem ou pela reconciliação que é feita entre os membros de uma
família.
“The Leftovers”, novo
drama da HBO, mergulha profundo em segredos, mistérios, predestinação, sinais e
fé. Em meio a essa gama de complexidade, traz para o centro da trama a dor, a
dor que nos move, nos toca, e nos transforma. Das ruínas, nascerá o novo. Do
caos, haverá a ordem. Da dor, brotará a cura e a vida.
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