terça-feira, 11 de outubro de 2016

Nise - O Coração da Loucura


Há dentro de nós, homens e mulheres, um universo de caos, de pontos obscuros, de certezas e incertezas.

Em “Nise: o coração da loucura”, temos um drama que aborda a vida de uma médica psiquiatra, Nise (Glória Pires). Após sair da prisão, onde passou um bom período, devido a ter sido acusada de ser comunista, ela retorna ao trabalho. Sua atuação será num hospital psiquiátrico da cidade. É sobre seu contato com estes pacientes marginalizados pela medicina e seu processo de tratamento que o longa aborda.

Um filme básico, que se apoia na protagonista do longa para conseguir obter seu sucesso comercial e uma boa repercussão na mídia. Mas este drama não é apenas um filme que envolve uma atriz global. É uma película correta, que se utiliza de uma história de vida bela e corajosa. Um longa que sabe utilizar as cores, os cenários e a trilha sonora para trazer o melhor do cinema e de forma singela.

A história se passa durante a ditadura miliar. Neste período histórico, pacientes psiquiátricos, ditos como “doentes mentais”, eram marginalizados da sociedade, trancafiados em hospitais que mais pareciam com prisões. Lá, distante dos olhos de todos, viviam suas vidas, um dia após outro, dentro dos seus próprios mundos.

Numa das primeiras cenas que estabelecem o longa, temos Nise entrando numa sala onde há vários médicos apresentando seus mais recentes trabalhos e pesquisas envolvendo o tratamento para estes pacientes. Ao entrar, todos a observam, dentre todos homens, uma mulher, claramente, um corpo estranho.

Ao ver tais pesquisas, ela não compreende e não aceita como tais procedimentos podem trazer a cura para estes pacientes. Então resolve realizar seu trabalho com um grupo de internados da instituição.

A ela cedem um espaço que ninguém deseja, a terapia ocupacional. É neste instante que vemos o olhar desta médica ganhando forma e força. Ainda não sabendo como realizar seu trabalho, ela apenas se atreve a observar e observar cada um destes pacientes e perceber seus gestos e falas. 

Após a entrada de Almir (Felipe Rocha) trabalhar junto com ela, os dois propõem então o trabalho com as artes, em suas mais variadas formas. Adentrar neste universo intocável não é algo simples e seus “clientes”, como ela mesmo os classifica, sabem disso. Para que ela possa entendê-los, ela precisa compreendê-los.

Numas da cenas, vemos um destes “clientes” desarmando todo penteado desta médica. Ora, tudo é uma questão de simbologia. Aquele penteado tão bem organizado, moldado, e estruturado, talvez esteja representando a própria personalidade desta médica. Neste sentido, ele é desestruturado, desfeito, mostrando o caos e a confusão. Talvez uma simbologia ao mundo em que estes personagens estão alojados, um mundo de caos, onde a linguagem não está bem estabelecida.




Pouco a pouco, o trabalho de Nise vai adentrando nas mentes destes indivíduos e por meio destes trabalhos, ela percebe uma linguagem e uma expressão deste inconsciente tão impenetrável. Tais desenhos, mandalas, podem expressar como este universo interior talvez esteja estruturado. Ao entrar em contato com os estudos de Carl Jung, Nise percebe aproximações dos estudos da psicanálise junguiana com os próprios trabalhos feitos na instituição.  Neste momento, começa então um lento e intensa terapia moldada pelas teorias psicanalíticas, as artes e estes “clientes”. Entretanto, tais estudos ainda não eram aceitos pela medicina da época, provocando no corpo clinico desta instituição uma afronta aos trabalhos desenvolvidos por Nise.

Com delicadeza, respeitando cada passo destes personagens e nos revelando como esta arte entra em contato com estes indivíduos, o longa vai nos proporcionando uma ligação do público, com estes personagens e Nise, é o elo de ligação.

As cores num primeiro momento do longa, são moldadas por tons escuros. Mas a partir que o drama caminha, novas tonalidades vão adentrando neste universo. Outro ponto interessante é com relação ao trabalho da pintura. Quando estes estão pintando, cada vez mais a claridade se mostra presente, iluminando tais quadros e revelando tais personagens até que ao final, o sol beira o olhar destes personagens.  



A trilha sonora obedece a estrutura do longa, não manipula os sentimentos, mas faz um trabalho sensato. Os cenários, pouco a pouco, tomam ângulos mais abertos, se distanciando dos lugares fechados no começo do longa.

O drama em si, ainda segue a cartilha do convencional, as vezes há elementos que mostram toda beleza do drama, em outros, pode-se perceber um tom tradicional, uma falta de ousadia. Mas o grande deste filme ainda está em sua história, ao nos apresentar um retrato da medicina marcada pelo medo, o medo do desconhecido e de sujeitos marcados pela marginalidade.

No elenco, há grandes atuações por parte dos “clientes”. Alguns personagens simplesmente mostram uma complexidade gritante, como a paciente Adelina Gomes (Simone Mazzer). Estes personagens não tem nenhuma fala de fato, são os gestos e as expressões faciais e corporais seus sistema linguagem. Contudo, conseguimos compreender suas tentativas destes de relacionarem com o meio que os cerca e tentando, ao modo deles, viverem experiências como qualquer indivíduo, viver sentimentos como amor, ciúmes, medo e desamparo. Apesar do belo trabalho destes atores, é Glória Pires, atriz global, que empresta sua fama e seu nome para este drama, dando a esta película, toda uma visibilidade que talvez, se não estivesse esta atriz neste trabalho, não teria.

“Nise – O coração da loucura” nos fala sobre o homem, sobre sentimentos, sobre medos e ideias de luta.







sexta-feira, 10 de junho de 2016

Uma constante Procura



Carismática, divertida e ousada. Em “Looking”, nova série da HBO, temos histórias, amores e desilusões de um grupo de personagens que não vemos com muitas frequência nas séries atuais, mas que a cada dia, tem mostrado sua face.
                                 
Looking”, série norte americana do canal fechado HBO, ousa em sua temática. Traz para o centro da trama uma histórica focada em três amigos que vivem na cidade de São Francisco, abordando suas vidas, seus amores, seus sonhos e suas vivências. Uma série como qualquer outra, com personagens, dramas, traições, desilusões e amores. O tabu está no fato de que os autores abordam o mundo gls e tem como protagonistas três homens homossexuais.

Patrick/Paddy (Jonathan Groffé) é um rapaz bacana, sensível e carente. Possui um bom emprego, sempre sorridente, sempre um pouco meio melancólico. Deseja encontrar alguém que busque algo sério, mas sempre nestas buscas, acaba entrando em situações constrangedoras.

Dom (Murray Bartlett) trabalha como garçom há dez anos num mesmo restaurante. Possui um sonho de abrir seu próprio negócio, mas ainda está preso a dificuldade e também a sua própria incapacidade de seguir adiante com tal ideia. Está solteiro há um tempo, seu último relacionamento não acabou muito bem e ele ainda sente-se preso a este sentimento. Mora com uma amiga, Doris (Lauren Weedman), personagem esta que é um dos pontos mais hilariantes do seriado.

E por fim, Augustin (Frankie Alvarez) mora com Patrick. Ele se considera um artista, intelectual e sempre se mostra muito arrogante. Namora um rapaz bacana, mas possui uma visão do relacionamento marcado por uma liberdade que o namorado não aceita.



O que se percebe neste seriado é como este tema tão delicado, a homossexualidade, ainda visto como tabu pela sociedade, é colocado em cena com tanta naturalidade. Há na série a presença do preconceito e do julgamento, entretanto tais práticas se estruturam no exterior deste seriado, ou seja, daqueles que estão fora da vida destes sujeitos, seja na representação da família que não aceita, que não compreende ou simplesmente que não toca no assunto.

Quando se fala em tais relações homossexuais, tudo bem, podemos conviver belamente e lindamente com tais diferenças. A partir do fato em que vemos e presenciamos tais práticas e fatos, nossos olhares mudam o foco e passamos a questionar tais ações e atitudes, agindo muitas vezes com pré-conceitos.

Apesar da trama mostrar um preconceito envolvendo a estes personagens, o enredo do seriado não se preocupa em se resumir a isto. Os diretores querem mostrar mais, querem ir além e revelar o cotidiano destes sujeitos. Eles trabalham, caminham, namoram, brigam, traem, enfim, tem uma vida. Uma vida tão natural, tão corriqueira e tão normal. Neste sentido, fica a pergunta, onde que está a diferença e a “não normalidade”?

Dom busca abrir um negócio, Augustin se encontrar como artista e Patrick um relacionamento estável. Em cada episódio, os títulos são guiados por tal procura, por tal busca. Uma busca constante que muitas vezes não encontramos ou achamos de fato, ou quando a encontramos, a perdemos novamente para que em seguida, venhamos voltar a procurar por ela.



Nesta primeira temporada, temos Dom querendo abrir seu próprio negócio. Saindo de um relacionamento que o marcara fortemente, ele apenas se envolve sexualmente com outros homens, nunca deixando de fato por envolver-se. Por acaso conhece Lynn, um sujeito mais velho que ele. Entre uma ajuda e outra, um conselho e outro, nasce entre estes dois homens uma certa tensão, desejo e insinuações. O envolvimento entre estes dois acontece da forma mais natural possível, sem ser premeditada ou realmente desejada.

Augustin é um rapaz que nesta primeira temporada se mostra muito arrogante. Ele possui um pensamento liberal quanto a relacionamentos e aceita a relação sexual com outros homens de forma natural. Seu namorado, Frank, não. Mesmo tendo este pensamento contrário, Frank aceita algumas posturas de Augustin. Tais ações provocarão ao desenrolar da temporada um desgaste sem retorno entre estes dois sujeitos. Com este casal, a série trabalha um tema caro ao homossexualismo: é possível uma relação tranquila entre dois homens, sem ter terceiros envolvidos?

Já com Patrick temos uma maior participação sua na trama. Ele é um jovem bacana e carente, em busca de um amor, de um namorado. Patrick busca algo sério nos lugares mais errados. Neste sentido, suas tentativas de namoro nunca dão certo e ao final da história ele sempre acaba sozinho. Nesta primeira temporada ele conhece Richie, um jovem divertido, meio calado e muito focado no que deseja. Os dois se conhecem por acaso e por este mero acaso continuam seu envolvimento.

Paralelamente a Richie ele também conhece Kevin, seu chefe. Este outra rapaz também provocará em Patrick uma forte confusão de sentimentos. Se a temporada se inicia com Patrick iniciando uma relação com Richie, ela se encerra com o desfecho deste relacionamento, ao mesmo tempo que abre o leque para possíveis novos casos.



Nesta primeira temporada de “Looking”, os diretores apenas nos trazem para a trama a apresentação destes personagens, fazendo com que se crie entre o público e os protagonistas desta série uma certa intimidade e carisma. A trilha cumpre bem o seu papel. As cenas de sexo são medianas, nada muito intenso. O seriado revela um outro lado do mundo gls, um lado romântico, terno e mais sensível. Mostra homens que choram, se declaram, que são emotivos.


A temporada tem um total de oito episódios apenas, com uma duração de apenas meia hora. Pouco, mas diante da temática apresentada e pelo canal por traz de tal produção, a HBO, é algo muito forte e representativo. Se antes, os homossexuais estavam representados por alguns personagens dentro de uma trama maior, nesta, eles tomam para si toda a história. 

O seriado teve apenas mais uma temporada, com 10 episódios, porém infelizmente foi cancelada em seu segundo ano. Mas mostrou ter qualidade, carisma, belos personagens e um roteiro bem construído. Uma bela aposta do canal, que apesar de sua vida curta, realizou um belo trabalho e conquistou uma excelente percepção da crítica, ao mostrar com naturalidade, sem estereótipos, este mundo gls, com seus problemas, diferenças, normalidades, vivencias e por ai vai. 


sábado, 4 de junho de 2016

Beirar-mar: Um tempo de descobertas, um tempo de amadurecimento


Um tempo de descobertas, um período de novas experiências.

O cinema nacional tem experimentado novos olhares, novas narrativas e novos pontos de vista sobre o homem. Se antes, apegado a um cinema marginal, como denuncia social, agora tem aumentado seu leque de produções e desenvolvido tramas que dialogam com novos públicos, novos personagens e novos enredos.

Em “Beira-mar”, temos Martin (Mateus Almada) e Tomaz (Mauricio José Barcellos), dois amigos de infância que por algum motivo desconhecido, ficaram um breve tempo sem se verem. Neste tempo, seguiram caminhos diferentes, mas resolveram então viajar juntos pare rever a amizade.

Martin precisa resolver uma pendência de seu pai e Tomaz vai para fazer companhia. O destino é uma cidade litorânea ao sul do Rio Grande do Sul. Em meio a um inverno rigoroso, nesta cidade que não acontece nada e onde apenas o silêncio reina assustadoramente, vemos estes dois adolescentes reverem sua amizade e restabelecerem seus diálogos.





A história do filme então é esta: dois jovens nesta cidade, andando pelas praças e pela praia, se dividindo entre fumar, beber e conversar. Uma cidade onde o sol não tem força e a noite é quieta, revelando uma beleza que somente as cidades pequenas possuem.

Num primeiro momento, esta estrutura gera um desconforto, mas talvez proposital, pois talvez represente a própria presença destes personagens. Eles são amigos que estão há um longo tempo sem se verem. Não há mais aquela intimidade entre eles, então os diálogos são sempre lançados para quebrar o silêncio, o tempo que não passa ou o constrangimento que tenta reinar.

Com o desenrolar da trama, vemos o motivo que os leva a esta cidade. Uma dívida familiar, mas isso não fica muito claro. Talvez o diretor do longa não queira explicar tudo, talvez esta falta de explicação é o que prevalece sobre a vida destes jovens. Eles vivem um dia após o outro sem terem noção do que talvez esteja acontecendo ou por qual motivo que tais experiências estejam vivenciando.

Com a chegada de uma amiga de Tomaz, vem também os jogos, as conversas, as risadas, os ruídos que quebram o silêncio. Três rapazes, três moças. Muita bebida, jogos e brincadeiras. Mas também as primeiras insinuações, revelações e percepções sobre a sexualidade.

Tomaz já sabe o que deseja, apenas guarda para si sua sexualidade. Martin ainda tem um caminho a seguir. A parte final do longa revela um tensão sexual, um jogo de insinuações, de desejos, de busca por descobertas. Assim é a sexualidade, um momento de descobertas, onde os prazeres vão ganhando vida e forma e mostrando o caminho pelo qual devemos trilhar, sendo apenas pautado pelos nossos desejos e não por uma sociedade que tenta se impor sobre nós.
  

“Beira-Mar” é sobre descobertas. Os garotos que protagonizam este longa são bem novos, isso gera um desconforto, talvez um mal-estar. Mas o longa caminha com muita ternura, sem desrespeito, sem cenas desnecessárias. Martin e Tomaz tem suas intimidades aos poucos sendo restabelecidas e percebe-se que entre eles um sentimento mais intenso e forte começa a brotar. Por mais que não haja diálogos, há os olhares, os gestos e o silêncio que constrange e que a todo momento tentam materializar desejos antes calados e reprimidos.

Este longa estabelece uma conexão com um novo cinema, um cinema mais introspectivo e mais intimista. A preocupação deste longa não é apresentar uma história de fato, pois história não há, mas é abordar esta descoberta da sexualidade, dos sentimentos tão abstratos, das dúvidas tão presentes.

A fotografia do longa acompanha a estrutura do enredo, cores frias e apáticas, fazendo referência a este inverno tão intenso que se estabelece nesta cidade. A trilha sonora é composta pela paisagem sonora, uma paisagem formada por silêncios e pelo som do mar, das ondas do mar e o mar ganha uma conotação interessante. 

Apesar do filme se chamar “Beira-mar”, este não vemos nunca praticamente no longa. Sua referência se estabelece pelo som das águas que podemos ouvir ou pela visão parcial da orla da praia, mas o mar mesmo nunca vemos, com exceção da cena final em que o personagem de Martin vai em direção a este, sendo confrontado pelas águas, pelas ondas, pela força do mar.

Talvez este mar represente os desejos contidos que ganham proporção ao final da trama, talvez sejam as dúvidas que transcorrem sobre ele devido aos desejos que ele realiza ao final da história. Talvez representem outras coisas ainda.


Um filme de silêncios, de olhares, de gestos, de desconforto que revela descobertas, olhares, dúvidas e desejos.



sexta-feira, 27 de maio de 2016

Le Revenants - quando a morte se faz presente


Na busca de superar a dor, de compreender os males que nos cercam, nos batemos contra as verdades, contra o passado e contra o presente. O tempo que nos cerca pode muitas vezes nos trazer paz e consolo, em outros momentos nos aumenta a dor e aflição. Mas quando este passado resolve voltar para nos assombrar, trazendo seus sentimentos, instabilidades e esperanças, ficamos sem reação, num misto de dor a alegria.

Em “Le revanantes” temos esta dura e impossível verdade pairando sobre uma pequena cidade da França. A primeira cena nos mostra um ônibus seguindo para uma viagem escolar. Neste ônibus está Camile, mas um acidente acontece e o ônibus cai sobre um penhasco onde todos os passageiros morrem e dentre estas vítimas está esta adolescente.

Após o acidente, vemos estas famílias tentando se reestruturar, mas nada permanece igual. Esta ferida permanece a sangrar e toda estrutura da família se desmorona. O pai de Camile tenta em vão participar de reuniões de um grupo de pessoas que também perderam seus filhos. A mãe está cada vez mais distante do marido, sempre calada e com um olhar melancólico e a filha, irmã gêmea de Camile, tenta viver despreocupadamente.

Um certo dia, como qualquer dia, vemos Camile subindo de um penhasco e indo em direção a cidade como se nada tivesse acontecido. Ela caminha e caminha em direção à sua casa, à sua cidade.

Ao entrar em casa, come algo, corre para o quarto e liga o chuveiro, algo corriqueiro, normal que nunca notamos ou percebemos mas que quando se deixa de fazer, nos revela uma falta. Quando sua mãe se depara com ela, o que se percebe é um calar. É um medo misturado a surpresa, a felicidade, a estranhamento. Ela está louca ou está vendo de fato sua filha viva novamente?

Liga para seu marido e pede que ele vá com rapidez para casa. Ao chegar em casa, sem saber o que está acontecendo, ele também presencia a cena. Os dois estão em choque, perplexos. Mas não, não choram ou gritam ou saem correndo. Nem eles sabem o que sentem. Há uma naturalidade misturada com impossibilidade guiando a estes personagens. As cenas que modelam este encontro inesperado é marcada por tantos silêncios, por tantos olhares, por tantas expressões.



Assim como Camile, vamos acompanhando neste primeiro episódio, outros mortos que também se levantam. Cada um tem seu passado, sua família e seus entes que deixaram. Mas eles não tem lembrança ou ideia do que tenham acontecido com eles. Então, se tudo é irracional para estes vivos, para estes mortos, tal situação torna-se ainda mais emblemática. Tudo mudou na vida das pessoas, então como eles conseguirão encontrar seu local em meio há tantas mudanças. Há lugar ainda para eles nesta cidade, na vida destas pessoas?

Moldado em oito episódios, cada trama aborda um personagem do seriado, com o último retratando o que de fato aconteceu ao despertar destes mortos. Não há terror, suspense ou um clima de medo no ar, como é de praxe nas tramas envolvendo mortos-vivos, mas um drama, um profundo e intenso drama. 

O que se vê no seriado são pessoas que seguiram com suas vidas, mas ainda sim, estão, de alguma forma, presos ao passado. O retorno destes que foram, não traz apenas um sentimento de felicidade, traz também dúvidas. Será que estes ficarão com eles para sempre? Seria uma segunda chance? Todos irão retornar? Por que somente estes retornaram? É com ternura, frieza, delicadeza e muita calma que este seriado responde a estas perguntas com mais perguntas. 

Nos quatro primeiros episódios, conhecemos um pouco sobre cada sujeito que retorna. Após isso, vemos que algo envolvendo a cidade está ligada a este fenômeno, mas algo de misterioso guarda ao personagem do Victor. Não há como dizer que estes que retornaram são moldados por traços de maldade, mas por sentimentos corriqueiros. Camile, ao retornar, sofre medos, receios e incertezas, sentimentos estes ligados a qualquer adolescente. 

Já Simon tenta compreender o que lhe aconteceu, mas sabe que algo não está certo com ele. Há uma certa maturidade guiando seus atos por breves momentos. Serge ainda é tomado pelos seus instintos assassinos. Victor teme ser abandonado e a esposa do Sr. Costa observa a tudo atentamente, como se soubesse tudo o que acontece e nada fizesse para mudar nada, pois sabe que nesta vida, não temos o controle de nada, ou seja, há um olhar de aceitação pairando sobre o seu falar.




Todos os personagens desta trama estão interligados por algo, pelo passado. O passado guarda as respostas do presente, inclusive as respostas para tais retornos e se estes ainda permanecerão com eles. Em cada episódio conhecemos sobre cada personagem, sua vida e morte, ao mesmo tempo que entendemos um pouco melhor sobre a própria estrutura da série. 

Um personagem nos chama a atenção, pelo seu olhar e sua postura, este é Victor. Ele fora assassinado há 35 anos, não há ninguém que possa cuidar dele, entretanto, ele vai de encontro a Julie e desenvolve com ela uma relação fraternal muito delicada e tocante. Mas ao mesmo tempo, nunca temos certeza se ele está com ela por realmente desejá-la ou porque necessita desta ajuda neste momento.

Ao final da temporada, vemos que outros também retornam e desejam que estes que se levantaram vá com eles. Um final estarrecedor, tocante e intenso. O seriado tem apenas mais uma segunda temporada, fechando toda a trama. Algumas respostas nos são dadas, outras ficam no ar. Mas o seriado continua com a mesma estrutura.

Uma fotografia gelada paira sobre toda a trama. As cores são sempre moldadas por tons escuros e cinzas. Não há um sol que nos chame a atenção ou que prevaleça sobre todo o seriado. Os personagens são sempre apáticos, enfim, estão sempre vivenciando um constante luto sem fim. A dor reina, em todos cantos, lugares, olhares, subúrbios casas e paisagens. A trilha molda olhares e cenas, uma melodia calma e terna. Nada muito intenso que atrapalhe o peso das imagens.

Este seriado foi adaptado para os Estados Unidos, com a mesma estrutura, mesmos personagens, mesma história e até o mesmo roteiro seguindo os passos da série francesa, com seus diálogos, paisagens e ângulos de filmagens, mas algo não dá certo, deixando este seriado americano ineficaz e frágil. Talvez seja a estrutura ou olhar mais melancólico, com suas cores frias e um tom de constante solidão e olhar reflexivo que existem sobre as produções francesas. Talvez sejam ainda outros motivos que jamais venhamos compreender.






quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sense8 - ousada, interessante, uma questão de gosto



Sense8”: Num misto de desejos, sentimentos e pensamentos, sensações se cruzam numa constante contínua, onde o espaço é apenas um mero detalhe.

Will (Brian J. Smith), um policial de Los Angeles; Riley (Tuppence Middleton) uma dj irlandesa; Lito (Miguel Ángel Silvestre), um ator mexicano; Karla (Tina Desai) uma farmacêutica indiana; Capheus (Aml Ameen) um motorista de Nairobi; Sun (Doona Bae) uma executiva japonesa; Nomi (Jamie Clayton) uma hacker americana e Wolfgang (Max Riemelt) um ladrão alemão. O que estas vidas tem em comum? Estes são indivíduos com suas vidas, suas escolhas, seus traumas e passados, mas que tem suas vidas abaladas e mudadas quando passam a compartilhar entre eles suas experiências, medos e vivências. Algo impossível, algo improvável, mas que ganha contornos reais nesta nova série da Netfilix

“Senset”, nova aventura dos irmãos Wachowski, mergulha profundo numa trama moldada por pessoas comuns, com vidas comuns. Mas que se veem tendo habilidades não explicadas pela ciência ou compreendidas pela razão.

Nesta série, estes oito sujeitos tem seus sentidos e pensamentos interligados entre si. Tudo o que um vivencia, é vivenciado por todos, não apenas vivenciado, mas também eles podem interagir entre si, onde um consegue ajudar o outro em algumas ocasiões. Nesta busca por compreender tais percepções, a série nos entrega momentos únicos, marcados pela comicidade ou pelo mais profundo e terno drama.

Entretanto, em meio a descobertas destes novos sentidos e compartilhamentos, estes sujeitos não compreendem o que está acontecendo a eles, e veem isso como loucura, nervosismo ou stress. Diante desta realidade há também um grupo ou organização que procura saber quem são eles e os motivos que guia a este grupo são desconhecidos.   



A trama do seriado é simples em si. As habilidades que cercam estes sujeitos são moldadas pela sensibilidade, seja pelo olfato, pela visão, tato ou experiências. Assim como estes personagens, somos apresentados a este mundo e num primeiro momento não entendemos nada do que está acontecendo. Tudo segue, tudo caminha e todas as experiências são compartilhadas, mas nada é explicado. Conforme a trama vai avançando, vamos compreendo o que cerca estes indivíduos e quais são as habilidades que estes possuem.

“Senset”, nova aposta da plataforma Netflix, foi um dos achados de 2015. Com um belo roteiro e direção excepcional, o seriado conquistou público e crítica. Moldada em dez episódios, em cada trama seus protagonistas são apresentados e trabalhados, mas algo maior rege a série. 

Nos primeiros episódios somos apresentados a cada sujeito. Vemos quem são eles, como vivem, o que fazem. De forma inesperada, eles passam a compartilhar vivencias entre si. Tudo se inicia com uma mulher a quem não conhecemos numa casa abandonada. Ela está simbolizando dores de parto, mas numa atitude de altruísmo ou o por outros motivos, ela tira sua vida. Porém, antes, ela convoca e dá vida a cada deste senset. Neste exato momento, todos estes sujeitos compartilham desta visão.

Após esta morte, todos, em algum momento de suas vidas, terão experiências que não lhe pertences e aos poucos, vão se conhecendo entre eles. Alguns terão uma ligação muito mais do que simples compartilhamento, criando entre si sentimentos mais profundos. É o caso de Will, Rileys, ou a farmacêutica karla com o alemão Wolfgang.



Estas relações amorosas serão um ponto forte da trama, promovendo serenidade, ternura e sensibilidade. Porém, não é somente de amor que vive a série, outros temas percorrerão o seriado e um dos grandes emblemas é a questão de identidade, gênero e sexualidade que a série aborda. Lito é o ator mexicano que faz papel de homens viril que leva as mulheres a loucura pela sua masculinidade, entretanto ele é homossexual, é casado com um homem, mas esconde de todos esta verdade. O motivo, é o medo que isso possa prejudicar sua carreira.

Nomi, a hacker, é uma transexual que mudou seu nome, sua identidade e sua vida, deixando para traz o passado da identidade masculina e assumindo seu lado feminino, porém em suas relações amorosas, acaba por se envolver com outra garota. Neste momento, entra em debate uma tema problemático, uma questão complexa, subjetiva e delicada. A trama não trabalha apenas com o fato de um homem se aceitar enquanto homossexual, mas está ligada a gênero. E aqui o gênero não está ligado ao corpo físico, mas ao que a pessoa sente enquanto indivíduo. Esta personagem entra como umas das mais que recebe destaque por parte do enredo do seriado e talvez um dos motivos esteja no fato que ela possa representar o álter ego de Lana Wachowski, que recentemente optou pela mudança de sexo e assumiu uma nova identidade.

Outro ponto interessante do seriado é que ele respeita cada cultura que representa, neste sentido, em cada país temos suas culturas sendo mostradas e respeitadas e elas fazem parte da vida destes sujeitos. Percebemos o poder da tradição na cultura japonesa, as dificuldades e a força da resistência em permanecer vivo em Nairobi, África; as instabilidades culturais ainda presentes na Alemanha contemporânea, um machismo exacerbado e uma cultura de violência no México.




Num primeiro momento, os diretores nos apresentam estes personagens, após isso, constroem sobre cada um deles, arcos a serem trabalhados. Mas pouco a pouco, revelam toda mitologia da série, para próximo ao final, unificar todos os personagens num desfecho comovente.

Após o sucesso mundial alcançado com a trilogia Matrix, estes dois irmãos nunca conseguiram mais emplacar um grande sucesso. “Cold Altas”, drama instigante sobre erros e acertos, envolvendo tempos diferentes, foi recebido com ressalvas. Alguns o amaram, outros o desprezaram. 

Contudo, esta nova série é unânime, recoloca estes diretores no centro das atenções, apresentando uma trama complexa e simples, profunda e bela, ousada e intensa. Ousada porque as cenas que move a alguns personagens são fortes e quentes e profunda porque os temas debatidos pelos diretores são universais e merecem serem abordados.

Em meio a um objetivo por apresentar uma trama moldada por cenas de ação, drama e com um leve tom de comédia, estes seriado nos entrega um roteiro calcado em questões mais emblemáticas como preconceito, lealdade, questão de gênero, passado e presente, família e amores. 


terça-feira, 24 de maio de 2016

A tragédia de Macbeth



Desejo e ambição. Predestinação e loucura.

Em “A tragédia de Macbeth” do diretor Roman Polanski, temos a história de um homem, que tomado por presságios e profecias, adentra um caminho de desejos e ambições. Influenciado pela esposa, Lady Macbeth, assassina o rei e a partir deste fato, entra numa sucessão de atos sanguinários e violentos para manter-se no poder.

Esta é a trama de Macbeth, a trama de Shakespeare. Uma história densa sobre um rei, sobre uma profecia, sobre um desejo que o faz caminhar por caminhos obscuros e densos.

O longa se inicia com três bruxas enterrando uma mão com uma adaga nas areias de uma praia. Após isso, vemos brumas se levantarem e então, conhecemos o protagonista desta história. Macbeth, homem leal ao rei que num encontro com estas três bruxas recebe a profecia de que será rei.

Pouco a pouco, tais palavras entram em seu inconsciente e ele as aceita, as compra e as defende, tornando-se rei. Após assassinar Duncan, mergulha seu reinado numa sequencia de sangue, traições e assassinos para se manter com a coroa.



O cinema é um vislumbre de nossos sentimentos, desejos e medos. Nele estão contidas as sensações mais abstratas, as histórias mais secretas, as pulsões mais perigosas. A imagem nos arrebata, a trilha nos remete ao inconsciente, a trama nos prende pela sua história. O cinema em si, nos leva para viajar para mundo nunca ates imaginado e também nos coloca em épocas distintas das que vivemos e nos banha com um requinte histórico onde cotidiano, pensamentos e valores são revelados por meio de seus personagens, por meio de sua história.

Em “A tragédia de Macbeth” temos a adaptação para as telas do cinema de uma das peças mais intensas e fortes de Shakespeare. Neste drama, conhecemos um personagem marcado pela culpa, remorso e desejo, ao mesmo tempo que conhecemos também outra personagem tão importante quanto ele, sua esposa, Lady Macbeth.

Neste drama, algumas cenas trazem em sua essência grande profundidade. Três são de grande destaque. A primeira cena que traz as bruxas é de grande importância, pois elas trazem o elemento da predestinação. Serão estas personagens que irão trazer o elemento da traição para a vida deste personagem. Elas materializam o primeiro ato do regicídio. Para que Macbeth possa se tornar rei, algo precisa ser feito.


Outra cena importante é a que envolve a traição do duque de Cawdor. Pela traição ele recebe a pena máxima, a morte. Numa passagem, após Macbeth receber o presságio das bruxas, ele observa o duque já morto e teme pelo que pode acontecer se tais desejos que já sente forem colocados em prática. Será tido como traidor e assim como o duque morto, também será punido com a morte. Neste período histórico, a traição era paga com a vida.

Já na cena que envolve a morte de Duncan, ganha força e presença duas personagens marcando diferenças, semelhanças e loucuras. Neste momento, temos as primeiras mudanças de nuances entre Lady Macbeth e Macbeth. E estas mudanças se dão pelos olhares, pela expressão. Se o medo domina este homem até a cena do assassinato e uma frieza percorre a sua esposa, após a morte do rei, os papeis pouco a pouco vão sendo modificados. Macbeth toma as rédeas de toda situação e não mais consulta sua esposa sobre suas escolhas, já ela fica relevada aos cantos, olhando se questionando sobre o que esteja acontecendo.



Com a coroação de Macbeth, tem-se inicio a uma série de matanças. Quando Banquo percebe que Macbeth chegou ao trono de forma não justa, ele compreende que pode ser o próximo a ser morto, já que a profecia também envolvia e assim acontece. Da mesma forma, os filhos de Macduff e sua esposa são mortos por homens a mando de Macbeth. Estas cenas revelam como se dá as conspirações nesta sociedade.

A cada cena que corre, o drama tem sua trilha sonora intensificada. O semblante de Macbeth se antes era um de um jovem do exercito que provou sua lealdade ao rei, vai tornando-se na de um homem frio e calculista. Suas roupas também revelam tais mudanças. Pouco a pouco, a figura de rei se apossa do corpo de Macbeth e ele se apossa desta figura de poder. Já sua esposa, aos poucos, vai perdendo suas vestes, fazendo uma alusão a sua consciência e lucidez.


Ainda no longa, as cenas que envolvem as bruxas são marcadas por tons escuros, trilha densa, um céu nublado onde a presença da chuva e da tempestade sempre se faz presente. Talvez esta referência se dê pelo motivo que as bruxas representam a mudança neste reinado, onde esta mudança se dá pela morte e sua permanência sempre se concretiza sobre incertezas e mortes.

Alguns elementos do filme ganham relevância sobre seus fatores históricos. A pouca presença feminina na peça e quando estas são postas, são para revelar um lado negativo da história. São as três bruxas que lançam uma predestinação sobre Macbeth, homem valoroso que após isso passa a ser tentado pelos seus desejos. É sua esposa Lady Macbeth que o manipula a cometer o primeiro assassinato e o revela para si mesmo como um homem dotado de ousadia e frieza, características para um grande rei que todos devem temer. É a esposa de Macduff que não compreende as atitudes de seu marido e o chama de traidor. Isso revela a participação das mulheres neste cenário, sendo marcado por valores negativos. Talvez esta relação esteja no longa para fazer uma alusão a figura da mulher neste período histórico.

Neste jogo entre história e literatura, o cinema revela sua força e nos banha com um drama intenso e poderoso, onde toda a complexidade do texto deste renomado autor inglês se mantém em cada diálogo, imagem e metáforas.