quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O outro pé da Sereia




"Olhos, vale tê-los,
se, de quando em quando,
somos cegos e o que vemos não é o que olhamos,
mas o que nosso olhar semeia no mais denso escuro.

Vida, vale tê-la
Se de quando em quando morremos
e o que vivemos não é o que a Vida nos dá
nem o que dela colhemos
mas o que semeamos em pleno deserto.

Este mundo não é falso. Este mundo é um erro"


É com ternura, pois outra palavra não poderia exemplificar melhor essa ideia, que o autor Mia Couto faz ao escrever esse livro tão intimista e sensível, mas ao mesmo tempo irreal e realista. Nessa obra, o autor coloca em debate a identidade da cultura negra e do africano. É por meio de personagens tão singulares que Couto faz um balanço, uma análise e levanta uma lamentável realidade em torno deste continente.

A história se divide em dois tempos que correm paralelamente. O único ponto de ligação entre essas narrações está na imagem de uma santa. 

Mwadia  mora com Madzero Zero  numa vila distante de tudo, intitulada pelo marido como Antigamente. Nesse pedaço de vazio vivem os dois, numa relação amigável em que a simplicidade reina de uma forma impressionante. 

Depois que um pedaço de metal caiu do céu e Zero pensando que fosse partes de uma estrela que morreu e veio apenas descansar na Terra, ele resolve enterrá-la com a ajuda da esposa na floresta perto da vila. Um local cheio de segredos e história. Segundo Madzero, essa parte da floresta é guardada pelos seus ancestrais. Ao enterrar esse objeto, uma estranha figura imerge das águas. Uma figura que lembra uma imagem de uma santa, ao mesmo tempo que remete ao de uma deusa adorada pela tribo dos seus ancestrais.

Eles resolvem retirá-la de lá e levam para Lázaro Vivo , o curandeiro mais perto de Antigamente. Porém as respostas dadas pelo curandeiro não são nada animadoras. Segundo ele, se a imagem da santa não descansar num lugar sagrado, o espírito que paria sobre aquelas águas que ainda deseja vingança pela sua morte, sucumbira sobre Zero o levando a morte. Mwadia   então resolve partir para sua antiga cidade para depositar essa imagem numa igreja e assim salvar a pobre alma do seu marido. Porém, para voltar a sua cidade não é tão simples assim. Essa história se passa em 2002

Após esse fato, voltamos ao tempo, em torno de 1560, quando o padre D. Gonçalo da Silveira  mais seu seguidor a bordo do navio Nossa Senhora estão indo para a África, com a missão de evangelizar os pobres negros e conhecer de perto mais essa nova colônia da Portugal. Porém, a viagem até essas terras não será nada fácil e fatos estranhos estarão para acontecer que mudarão terrivelmente a vida desses dois sujeitos.

Mia Couto constrói uma história cheia de singularidades, graciosidade e engraçada sobre o "ser" negro e as raízes africanas. Porém, de todo o enredo apresentado a nós, as situações mais interessantes e divertidas deste livro giram em torno de como o europeu e até nós mesmos vemos esse continente e sua cultura. Visão essa, segundo o autor, já muito deturpada e irreal, pois imaginar um povo preso ao passado, em que a tecnologia não os contaminou é quase impossível.

Mas não é apenas nesses questionamentos apontados pelo autor que reside o grande dessa obra. O livro tem uma estrutura tão poética, passagens profunda e muito intimistas. Há um “q” de existencialismo percorrendo esses personagens, questões que de breve lembram as inquietações nas obras de Sylvia Plath e Virgina Woolf

Outro ponto interessante são com relação aos personagens apresentados durante o decorrer da história. Todos tem suas singularidades e são trabalhados com muita complexidade. Todas as ações cometidas por estes são reveladas e compreendidas ao desenvolver da narração. Todos ali tem algo a esconder e apenas nós que iremos descobrir todos os segredos escondidos no mais profundo de suas almas.

Mwadia que é a nossa personagem que faz a ligação entre esses dois tempos, guarda uma complexidade e uma dúvida que paira até a última frase do livro. Ela foi predestinada a pertencer aos dois mundos: o dos mortos e dos vivos, sendo como um canal, podendo ter uma relação de vivência com estes dois sem perceber. Devido a isso, jamais sabemos realmente se todos os personagens que passam por ela estão vivos ou mortos. Se são pessoas dotadas de folego de vida, ou espíritos ainda preso a esse mundo, caminhando sem saberem sobre a verdade que lhe cercam. São os passos de Zero que não ficam cravados na terra, as mãos geladas da antropóloga brasileira, o não reflexo do barbeiro Arcanjo diante do espelho, os quadros pendurados na parede. Todas essas dúvidas não são respondidas claramente, deixando apenas para que está lendo, interpretar os fatos e tentar compreender essas indagações.

Passagens que marcam são várias, personagens tocantes são todos praticamente. Em todo começo de capítulo, há uma frase dita por algum personagem que poderia, de certa forma, resumir toda a ideia dos acontecimentos que virão em seguida.

O outro pé da sereia é uma obra fascinante, cheia de nuances, ternura e profundidade. Com um tema que merece nossa atenção e uma mensagem que nos faz pensar e refletir: tudo é uma questão de ponto de vista, uma mesma imagem pode representar para alguns  a Nossa Senhora, da mesma forma que para outros  irá representar Nzuzu, ou Kianda, a deusa das águas. É nesse hemisfério que Couto quer trabalhar. A África ainda continua lá, com seus povos e suas tradições, mas estas como todas as outras, são transformadas com o tempo, porém, não os faz diferentes de outros povos. Se declarar como negro, ou como branco não nos faz diferentes ou únicos, pois somos todos iguais, sem distinção de pele, raça ou credo. Segundo o autor, antes de termos cor, uma crença, uma etnia, somos humanos.

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