Quem tem olhos veja e quem pode ver, que enxergue
Uma história forte, densa, cheia de detalhes, nunces, metáforas, mensagens e pensamentos. Um filme para ser sentido e percebido, onde vemos o pior do homem, mas também o seu melhor. Baseado na obra de José Saramago, esse filme obteve opiniões ao extremos, alguns os consideraram vulgar, violento e distante, outros viram nessa obra um grande filme, perturbador sim, mas nunca distante. Uma análise do homem em seus medos e devaneios.
O argumento em si é simples, um homem (Yusuke Iseya) fica cego enquanto dirige o carro, um homem (Don McKellar) o ajuda, o leva para casa, porém rouba o seu carro. A esposa (Yoshino Kimura) desse cego ao chegar em casa e ficar sabendo do fato, o leva para um especialista. No consultório estão uma jovem de óculos escuros (Alice Braga), um velho (Danny Glover) com uma fenda no olho e um garoto. O médico (Marck Ruffalo) atende primeiramente o cego, mas fica surpreso com o caso. Passa algumas orientações e o dispensa. O oftalmo ao chegar em casa, comenta o caso com a esposa (Julianne Moore), ao acordar percebe que também está cego. A partir desse fato, uma cegueira branca repentina ataca a todos, primeiro os que estavam com o primeiro cego: o médico, a jovem de óculos escuros, o ladrão, o garoto e o senhor, depois, todos os outros com quem eles tiveram contanto. Todos são levados em quarentena, mas a única a poder ver tudo o que está acontecendo é a mulher do médico. Nesse local, eles ficam e permanecem, porém a situação começa a se complicar quando mais pessoas são enviadas para o local. Com o passar dos dias, o que se vê é o homem em suas condições mais primitivas.
O longa apesar de ter um enredo curto, possui muita profundidade. A ideia do filme não é entender o que é essa cegueira, caracterizada como uma superfície leitosa, ou sua cura, mas como as pessoas, por meio dessa falta de visão, perdem toda a sua estrutura, toda sua base de civilização, se rendendo ao seu lado mais primitivo, em que apenas tentam se manter vivas. Por meio dessa história, o pior do homem é revelado, visto, suportado, pois muitos crimes são cometidos durante a quarentena, mas alguns tentam manter o pouco de dignidade, humanidade e moralidade que lhe restam e a única a poder ver tal situação em que todos se encontram é a mulher do médico. Ela é o nossos olhos, é por meio dela que podemos ver, sentir e perceber as fraquezas e limitações humanas.
Na obra, são levantados vários pontos para tentar entender o motivo dessa cegueira, mas no longa, a questão não fica sobre esse critério, o que o diretor quer é mostrar, apenas observar o grau de humanidade que pode ou não restar de todos diante de tal fato. Porém, uma das ideias colocadas no longa, no começo e ao final do filme, para essa epidemia está ligada a não compreensão das coisas, basicamente seria como se estivéssemos vendo tudo a nossa frente, porém não pudéssemos compreender o que estamos vendo ou, no fato de simplesmente deixarmos de vermos por um desejo, porque não queremos mais ver ou reconhecer tanta dor e desprezo, essa explicação estaria ligada a cena da igreja e dos santos.
Mas não importa, o longa tem toda uma estrutura técnica muito bem pensada para supervalorizar cada sentimento, fala e situação no longa. A fotografia esbranquiçada, a ótima trilha sonora, o elenco mais do que perfeito, a direção competente de Meirelles.
A fotografia imprimi mais personalidade ao longa, sempre clara, chegando a ficar quase que difícil a leitura das legendas (isso no cinema), ela é mais do que um acessório ou um detalhe para embelezar o longa, ela interage com o drama de tal forma que torna-se num personagem de extrema importância à história. Em falar nisso, muitas das cenas do filme foram gravadas em São Paulo, pois o drama é um trabalho realizado em parceria com os países Brasil, Japão, Uruguai e Canada e todas as cenas foram gravadas entre esses países.
A trilha sonora assinada pelo grupo Uakti é outro ponto positivo, ela dá sensibilidade a algumas cenas e ameniza outras. Algumas melodias lembram muito as do filme As horas, do compositor Philip Glass, é um ritmo gostoso, agradável, que causa tensão e ansiedade. Muito boa para se ouvir e ser levado por essa melodia.
Julianne Moore liderando o elenco está formidável, uma atriz de excelente qualidade. Sua face de cansaço, sua expressão e seus olhos vendo tudo e todos se desmoronando e ela nada podendo fazer para ajudar, além de tentar dar o mínimo de ajuda possível que aos pouco a leva a um cansaço sem fim, desejando e temendo cegar também, enfim, uma atuação e um trabalho da atriz impecável.
Mark Ruffalo consegue nesse papel mostrar maturidade e profundidade. Um ator que faz umas escolhas interessantes, ao mesmo tempo em que obtém papéis densos e bons em filmes seguros como Minha vida sem mim, Zodíaco, Conte comigo, Tentação e tantos outros, trabalha em filmes rasos como De repente 30, Voando alto, Dizem por aí, mas tudo bem, num geral, é um excelente ator que neste filme, consegue obter um agradável resultado. Alice Braga é outra atriz muito competente que aparece no longa, uma brasileira que vem tendo bons trabalhos no cinema internacional e em projetos bem diferentes.
Outro ponto que chama a atenção para esse filme é que seus personagens não possuem nomes, apenas são descritos pelas suas características principais (cego, médico, esposa do médico) e não é dito em qual cidade essa epidemia acontece. Isso faz com o longa crie diversas teorias sobre isso, como a questão de que eles não tem nada que lhes faça ser importante, nem um nome, pois diante dessa terrível cegueira, todos são iguais, sem nomes, etnia, ou identidades e também o fato de que esse evento possa ter acontecido em qualquer lugar, pois no final, todos podemos passar pelas mesmas experiências e pelas mesmas fraquezas sem distinção de cor, raça ou passado.
Mas ao final de todo esse trabalho, o que prevale ainda é o longa e como ele aborda as relações humanas, as nossas fraquezas, limitações e medos. Como podemos ser ásperos, rudes e nos despir de toda a dignidade para podermos prevalecer e mantermos vivos, mas também como podemos nos sensibilizar com o outro, seja por meio de um gesto ou de atitudes.
Muitos alegaram que esse longa abordou a obra de forma muito gélida, mas não há como negar calor humano nas cenas em que todos estão ouvindo o rádio e compartilhando daquele momento ou como a personagem da jovem de óculos escuros toma para si a responsabilidade de cuidar do garoto que se vê sozinho sem o amparo da mãe, dando até da sua própria comida para ele ou na cena em que a mulher do primeiro cego se encontra com ele.
Um longa terno, entretanto, que não foi bem recebido como uma obra cheia de qualidade como deveria ser, porém, em meio a tantos questionamentos sobre a qualidade do drama, o próprio autor do livro, Saramago que por muitos anos relutou fortemente contra a qualquer adaptação de suas obras para o cinema, na opinião de que elas poderiam perverter e modificar a ideia da história, chorou ao ver o filme. Bom, se o drama teve aprovação do autor da história, é porque esse filme cumpriu o seu papel: transferir em imagens as palavras deste que é um grande livro.
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