“Todos os ruídos têm um sentido, todos são ritmados [...]. Tão mais inebriantes quanto são os sentimentos da solidão” (WEILL apud MORAES, 1983, p. 34).
Os ruídos expressam idéias, pensamentos, circunstâncias, interferências, condições da vida e tantas outras situações que se pode ou deseja ter conforme o objetivo daquele que pretende repassar algo. Pode-se colocar como ruído todo e qualquer tipo de som que está ligado a paisagem sonora (SHAFER, 1991) . Desde sons que movem a cidade ou o campo, dos mais característicos aos mais imperceptíveis. Devido ao homem receber grandes quantidades de informações sonoras atualmente, é de extrema complexidade conseguir distinguir ou decifrar todos os ruídos que lhe cercam, somente quando estes lhe causam algum mal ou irritação é que se pode percebê-los.
Após a Segunda Guerra é que começou de fato os estudos sobre os ruídos na construção da música. Se antes era visto como algo que poderia prejudicar a harmonia, com o avanço dos estudos, compositores passaram a utilizá-lo.
No filme Dogville, do diretor Lars Von Trier, o ruído é trabalhado de forma interessante. Ele desempenha a função de complementar o cenário construído pelo diretor. Toda a cidade elaborada por Trier fica instalada num palco. Todas as casas, ruas, jardins são representados por desenhos no chão, ou partes de estruturas que dão a idéia de um cenário. Nesse universo, o que complementa a veracidade desta cidade são os ruídos que representam as ações e movimentos convencionais da realidade. É o som da porta ao ser aberta, a maçaneta girando, o cão latindo ou o som do vento. Os sons produzidos imitam os do ambiente, tão presente no cotidiano da sociedade, mas nunca percebido. O peso da mensagem se intensifica com o uso dessas características próprias do meio que são colocadas a se perceber. Esses ruídos podem ser encontrados abundantemente no meio, porém devidos a vários fatores não são percebidos, mas ao se escutá-los, o espectador consegue notar e compreender a mensagem do diretor, mesmo quando essa se passa de forma indireta e subliminar.
Outra produção cinematográfica interessante invocar é o filme brasileiro Mutum da diretora Sandra Kogut. O longa retrata a história de Thiago, um garoto que vive num local isolado em Minas Gerais. Nesse filme, em comparação com Dogville, a trilha sonora é usada de forma semelhante e distinta ao mesmo tempo. Semelhante, pois a diretora utiliza o som ambiente para ilustrar as cenas, dando mais veracidade a história, distinta, pois em Mutum não há trilha sonora instrumental, como usado na produção de Trier, mas apenas os ruídos e o som ambiente. O que se ouve são os sons que rodeiam a vida desse personagem. As risadas das crianças, as brigas dos adultos, os animais correndo, o som do riacho, todos os tipos de sons presentes nesse cotidiano tão simples e que estão na película ressaltando de forma indireta as características desse local, que é humilde em seu contexto.
Apesar dos avanços, poucos foram os estudos produzidos nessa área. Segundo Shafer (1972), um dos grandes teóricos da música, o “ruído é o som indesejável [...] qualquer som que interfere [...] quanto mais selecionamos os sons para ouvir, mais somos progressivamente perturbados pelos sinais sonoros que interferem [...] o mundo está repleto de ruídos” (1972, p. 23). Seu trabalho foi direcionado na transformação da paisagem sonora do meio ambiente proveniente das mudanças econômicas e industriais do novo século.
O Silêncio Fala
“O silêncio não existe. Sempre está alguma coisa acontecendo que produz som” (CAGE apud VALENTE, 1999, p. 89).
Assim como os estudos sobre o ruído, as pesquisas sobre o silêncio começaram após a Segunda Guerra. Nesse momento, ele deixou de ser usado como um recurso expressivo para ser observado como elemento de grande relevância.
Um experimento de John Cage realizado na década de 1950 sobre a questão do silêncio é de extrema importância citar para poder compreender como esse elemento encontra-se no meio sonoro. Cage se trancou numa câmara anecóica, uma sala blindada em que as paredes, chão e teto são cobertos por um material absorvente que impede e elimina qualquer onda mecânica como o som. Após ter feito isso, o único ruído que pôde ouvir era o da corrente sanguínea e do seu sistema nervoso.
A conclusão que ele chegou é que ao eliminar qualquer sonoridade ou fonte sonora, ainda sobrará algo como o som do corpo. “A rigor, fisicamente e em termos absolutos, ele (o silêncio) não existe na biosfera. [...] O que chamamos costumeiramente de silêncio corresponde a uma infra-audição do ruído” (Neves apud Valente, pg. 89). Não há ausência completa do som, pois mesmo quando todos os ruídos são extirpados, ainda resta a sonoridade do corpo, o ritmo da vida, ou seja, “o silêncio essencial é a morte” (SHAFER, apud VALENTE, 1999, pg. 77).
Assim é o silêncio: introspectivo e profundo. Ele age “atuando como recurso expressivo, causando tensão, em conseqüência de expectativa” (VALENTE, 1999, p. 89). Sua presença quase não é nítida. Ele está ali, mas ao mesmo tempo não, quando todos os sons adormecem e todas as vozes e cantos morrem, resta o silêncio que sempre esteve naquele local, sendo usado para todos os fins possíveis, desde os metafóricos a explicativos ou contemplativo. Segundo Shafer (1991, p. 71) “(o) silêncio é negro [...] é um recipiente dentro do qual é colocado um evento musical [...] é uma caixa de possibilidades. Tudo pode acontecer para quebrá-lo [...] o silêncio soa”.
A questão e importância do silêncio evoluíram com o tempo. Até os estudos de Cage, trabalhava-se o silêncio como marcação para as partituras ou uma pausa entre os ritmos, uma forma de o ouvinte perceber a divisão dos ritmos proposto pelo instrumentista, mas com o desenvolvimento dos estudos de Cage, o silêncio começou a ser percebido como algo a mais, algo que vai além da ausência de som para ganhar novos contornos. Esses novos dizeres podem ser na esfera musical, artística, filosófica ou psicológica. “A ausência de som pode funcionar como ruído de código” adverte Valente (1999, p. 46) nos seus estudos sobre o ruído e o silêncio na contemporaneidade.
Em se tratando de cinema, o silêncio tanto pode ser utilizado na composição instrumental da trilha sonora, quanto como elemento metafórico no enredo da história. Nesse caso, há um silêncio para denotar algo, transmitir uma mensagem, fazendo toda uma referência aos personagens. “O silêncio é fundamental para a composição do filme, pois é nesse intervalo que os sentidos se comunicam. É no silêncio que as sensações se traduzem” (COSTA, 2001 apud COSTA, 2006, p. 110). O silêncio também pode ser colocado com outros intuitos, em certas cenas para denotar que há uma barreira, uma parede ou uma mordaça que impedem os personagens de falarem ou dizerem algo.
COSTA, Fernando Morais. O som no cinema brasileiro: revisão de uma importância indeferida. 2006. 268 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro. 2006.
MORAES, J. J. .Música da modernidade: origens da música do nosso tempo. São Paulo: Editora Brasiliense. 1983
SHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora UNESP. 1991
VALENTE, Heloisa de Araújo Duarte. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume. 1999.
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